quinta-feira, 13 de junho de 2013

Jornalismo, ano 2035

Alguma última edição encalhada (Imagem: Viomundo)
-Filho, pega o jornal?
-Que jornal, pai?
-O que o entregador deixou aí na porta.
-Mãe! O papai tá delirando de novo, falando para pegar o jornal na porta!
-Ué? Não entregaram de novo?
-Não, pai. Não existe jornal há uns vinte anos, já. Eu mesmo só sei o que é porque o vovô me mostrou uns pedaços de papel amarelado com o seu nome na semana passada.
-Pois é. E você dizia que eu estava inventando...
-Ah, pai. Você começou com um papo de que existia um teclado no qual você digitava e já saía um papel impresso...
-Claro que existia. Ainda me lembro da Olivetti...
-Era gostosa, pai? A mamãe conheceu?
-Como assim, garoto? Olivetti era o nome da máquina de escrever.
-"Máquina de escrever"... Até parece.
-Ah, filho, era uma época tão romântica...
-Como assim? Todo mundo pegava todo mundo naquele lugar para onde vocês iam? Como é que se chamava mesmo? Redenção?
-Redação, meu filho. Até rolava uma pegação, mas não é disso que eu tô falando.
-Você e a mamãe se conheceram lá?
-Quase isso. Nós dois éramos jornalistas, não na mesma redação.
-Nossa! Existia mais de uma?!
-Sim, dezenas. E foram acabando, uma a uma. Primeiro, vieram com um papo de sinergia, de que todo repórter tinha que ser multimídia, gravar entrevista, escrever, fazer vídeo, tirar foto, fazer uma versão da matéria para o impresso e para o online, além de gravar uma chamada para a rádio.
-Sério? Sozinho, pai? Deve ter rolado uma grana boa nessa época.
-Que nada. Só o trabalho que aumentou, o que chamávamos de "salário" não melhorou um centavo.
-Sei... E, mesmo assim, vocês ficavam até tarde no trabalho?
-Sim, convenceram a gente de que o nosso trabalho era o mais nobre do mundo, e que ninguém tinha princípios éticos como os jornalistas tinham. Tinha sempre uma reunião numa mesa grande, no começo e no fim do dia, em que parecia que íamos decidir o futuro do mundo. De alguma forma, decidimos. Só não sei se foi uma boa escolha.
-Ah, pai, não fica assim...
-O pessoal achava que o jornalismo nunca iria acabar, pois só o jornal e as revistas podiam ser levados para o banheiro. Não tinha como dar certo algo que dependesse de um momento tão nobre da vida das pessoas para sobreviver.
-Que coisa, pai... Como eram essas revistas?
-Eram tipo esses livros que eu ainda tenho aqui na estante de coisas antigas, só que mais finas e saíam todo mês, algumas saíam toda semana.
-E sempre tinha assunto?
-Tinha. Se não tivesse, o pessoal inventava. Tinha uma revista semanal que era muito boa nisso. Se não tinha uma denúncia para inventar sobre um político, falava de algum órgão do corpo humano, como se fosse uma grande novidade.
-Dá para entender por que acabou...
-É. Começou com a tal da internet. De repente, qualquer um podia escrever bobagens e colocar no ar. Depois, veio o fim do diploma, quando o Supremo decidiu que qualquer um podia ser jornalista.
-Ah, pai, mas qualquer um pode mesmo.
-Tá, é verdade, mas a gente não sabia disso.
-E vocês não fizeram nada?
-Ah, a gente achou que o jornalismo sobreviveria, que os jornais precisavam da gente para fazer matérias de qualidade, e que era o que os leitores queriam.
-E era?
-Nunca saberemos. Porque não era o que as empresas anunciantes queriam, e eram elas que pagavam as nossas contas. Depois, vieram os passaralhos.
-É de voar?
-Sim, só que eles se alimentam de emprego de jornalista.
-Que triste. E como os tais jornais passaram a ser feitos?
-Ah, eles contrataram um monte de recém-formados para pagar menos, o trabalho foi sendo substituído por contribuições e opiniões gratuitas de leitores, e os jornalistas de verdade foram sendo dispensados. Aos poucos, vieram os sistemas automáticos de criação de textos e notícias, as câmeras de segurança passaram a substituir as filmagens profissionais. E era só mandar um motoboy para os eventos com um celular na mão, para colocar na boca do ministro, que o próprio computador digitava e colocava tudo no ar.
-Motoboy?
-Esquece. É da época em que ainda era possível circular pelas ruas de São Paulo usando rodas.
-Nossa, nem consigo imaginar isso. E esses tais computadores roubaram o emprego de vocês?
-Aos poucos, sim. No começo, eles ajudavam, eram ótimas ferramentas de comunicação, para os padrões da época. Podiam ter revolucionado o jornalismo. Tinha um "site" ótimo, que se chamava Google e encontrava tudo o que quiséssemos.
-Era só falar com ele?
-Não. Na época, ainda precisava digitar. E tinha um outro site, que se chamava Facebook, para as pessoas se falarem e mostrarem que estavam felizes, e nenhum jornalista admitia que a vida já estava uma porcaria. Aos poucos, as pessoas foram deixando de comprar jornal, e os jornais foram migrando para a internet, essa conexão que, hoje, até a nossa geladeira tem.
-Mas e aí?
-Aí, os jornais não sabiam mais como ganhar dinheiro, porque, na internet, tudo era de graça. Aí, criaram versões dos jornais para um aparelho que, na época, era revolucionário, chamado iPad. Só que, no fundo, era o mesmo jornal, copiado na tela do aparelho, já chegava velho. Foi nessa mesma época que os jornais começaram a fechar, se transformar em sites, fazer matérias sobre bichinhos, celebridades que iam à padaria e formatos curiosos de sombras. Aí, a jornalistada começou a fazer blogs, achando que, assim, poderia manter o jornalismo vivo.
-Blogs?
-Deixa para lá, eram umas páginas pessoais que os jornalistas frustrados usavam para escrever o que tinham vontade.
-E funcionou?
-Por um tempo, sim, mas não pagava as contas. Aí, o pessoal foi migrando para outras profissões, passou a dirigir táxi, abriu bar, aproveitando que muitos já tinham experiência de empresário dando nota fiscal nos jornais... O problema de quem abriu bar é que os clientes eram, na maioria, jornalistas também, e ficavam pedindo fiado, e foram rareando com o tempo, já que não tinham como pagar.
-Entendi.
-Era uma época bonita, sabe, meu filho? Bem, vai lá, que tá na hora de você ir para a escola.
-Ok, vou para o meu quarto me conectar na aula.
-Deixa eu ir para a praia, que o dia tá bonito. Vai dar para vender bastante sorvete hoje.

*Peço desculpas aos fiéis leitores pelo longo texto, mas é que, apesar do fim iminente do jornalismo, eu ainda sou um viciado e com raízes no impresso.

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